O retorno em Interlagos: um recorte afiado da fase solo
Aos 67 anos, Bruce Dickinson pisou no palco do The Town 2025 em São Paulo no dia 7 de setembro e mostrou por que seu nome segue inflamando plateias no Brasil. O show começou às 18h10, no Autódromo de Interlagos, e trouxe aquele clima de ritual que o cantor vem usando na turnê solo: a introdução “Toltec 7 Arrival” tocando em fita e, logo depois, um trecho a capela de “Revelations”, antes da pancada elétrica. Quem acompanha a tour pelos EUA — Dallas, Houston, New Orleans e Fort Lauderdale, no fim de agosto e início de setembro — reconheceu a mesma costura de abertura.
O repertório foi direto ao ponto. Em formato de festival, o tempo de palco é menor que nos shows solo completos, então a ordem do dia foi condensar a essência. Entraram as bases da carreira individual do vocalista, com ênfase no material recente de The Mandrake Project (2024), e um punhado de faixas que todo fã espera ouvir. Nada de longas divagações entre músicas: a banda girou no talo, com performance cravada e sem excessos.
Para quem só conhece o frontman do Iron Maiden, a apresentação serviu de vitrine para lembrar como Dickinson construiu, desde os anos 1990, um catálogo solo com identidade. “Accident of Birth” e “The Chemical Wedding” continuam soando pesadas e melódicas, com refrões que agarram a garganta. Já as peças novas — “Shadow of the Gods”, “Rain on the Graves” e “Resurrection Men” — sustentam o conceito sombrio do disco de 2024, um cruzamento de riffs densos, letras de atmosfera gótica e um pé no hard setentista que Roy Z ajuda a destilar com autoridade.
O momento emocional veio, como esperado, com “Tears of the Dragon”. É aquela música que atravessa gerações no Brasil: braços erguidos, coro afinado, muita gente cantando mais alto que o PA. Mesmo em tom de festival, não faltou espaço para a dinâmica teatral do cantor — entradas precisas, controle de volume na voz e aquele domínio de palco que ele transformou em assinatura ao longo de décadas.
Setlist, banda e o Brasil no mapa da turnê
A espinha dorsal da apresentação seguiu o padrão da turnê The Mandrake Project: blocos que alternam o material clássico dos anos 1990 com a fase atual, além de uma ou outra piscadela para o Iron Maiden. Em São Paulo, “Revelations” apareceu logo no começo, mantendo a tradição das datas recentes. Entre as escolhidas, o público ouviu peças que têm sido fixas neste giro:
- “Accident of Birth” — vigorosa, com refrão explosivo, segue como cartão de visitas da fase solo.
- “Abduction” — a faixa de Tyranny of Souls (2005) mantém a mão pesada e o drive nas guitarras.
- “Laughing in the Hiding Bush” — recorte de 1994 que envelheceu bem, com groove e ataque de palhetada secos.
- “Shadow of the Gods”, “Resurrection Men” e “Rain on the Graves” — o miolo atual, representando The Mandrake Project (2024), dá coesão ao show.
- “The Chemical Wedding” — riff monolítico, clima ritualístico, um dos ápices do set.
- “Tears of the Dragon” — catarse coletiva e a melodia que não sai da cabeça.
O giro norte-americano já vinha rodando entre 90 minutos e quase duas horas. No The Town, o recorte foi mais enxuto, mas sem perder impacto. A opção por faixas “de núcleo” garantiu fluidez: menos trocas de cenário, mais música, e transições rápidas. E a abertura com a intro em fita, seguida da voz a capela, funcionou como assinatura da turnê — aquela marca que prepara o terreno antes do choque elétrico.
A banda que acompanha Dickinson entrega o pacote com precisão cirúrgica. Roy Z, velho parceiro de composição e produção, conduz a massa sonora e segura o peso nos riffs. Dave Moreno dita o andamento com bateria firme, enquanto Tanya O’Callaghan ancora tudo no baixo com pegada segura. Mistheria preenche o espectro com teclados que soam orgânicos e ajudam a narrar o clima do show. No segundo flanco de guitarras, Chris Declercq injeta ataque e dobra as linhas quando o repertório pede. É um time coeso, treinado para shows de festival e de casa fechada.
O Brasil ocupa um lugar especial nessa fase. A volta aos palcos brasileiros como artista solo, em um festival que conversa com a linguagem do rock e do heavy metal, reforça um vínculo antigo. Dickinson conhece o jogo: quando traz um clássico do Maiden, como “Revelations”, ele faz isso com respeito ao repertório da banda, sem transformar o set solo numa compilação de hits do grupo. E quando mergulha nas faixas próprias, confia na força das melodias e na história construída com o público por aqui desde os anos 1990.
Visualmente, o show manteve a estética da turnê: telões com imagens ligadas ao universo de The Mandrake Project, cortes de luz marcados por mudanças de andamento e um desenho de palco pensado para a dinâmica do vocalista. Sem pirotecnias exageradas, o foco ficou no que interessa: banda afiada e interpretação. Essa escolha casa com o formato de festival, em que montagem e troca de sets precisam ser ágeis.
Antes do festival, a expectativa já vinha aquecida por setlists divulgados nos EUA e por previsões da imprensa especializada. A Rolling Stone Brasil, por exemplo, listou uma base de músicas esperadas — que bateu em grande parte com o que se viu em Interlagos — e surfou a onda com uma edição especial de colecionador sobre o Iron Maiden, com dossiês de discos, história de turnês no país, força do merchandising e até um passeio pelo avião da banda. Foi um bom termômetro do interesse que a temporada solo reacendeu.
No fim, o recado ficou claro: em palco de festival, com tempo cronometrado, Dickinson soube escolher as peças certas para contar a própria história. Um recorte que dialoga com a fase clássica, apresenta o material novo sem pedir licença e lembrando que, quando chega a parte de cantar junto, São Paulo nunca decepciona.
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